Epoca

A NOVA ECONOMIA DO CLIMA

O ENFRENTAMENTO DO AQUECIMENTO GLOBAL É UMA OPORTUNIDADE PARA UMA NOVA ECONOMIA GUIADA PELA MAIOR EFICIÊNCIA ENERGÉTICA

por Joaquim Levy

Quem é jovem hoje provavelmente vai viver mudanças tão extraordinárias quanto aquelas experimentadas por quem nasceu há 150 anos. O enfrentamento do aquecimento global causado pela ação humana vai mudar profundamente as economias. O que vale é que o caminho para chegar a um planeta com emissões líquidas zero de carbono, evitando que a temperatura média global suba além de 2 graus célsius em relação ao período pré-industrial, pode ter surpresas positivas e levar a um mundo com mais oportunidades para todos, se as escolhas adequadas forem feitas.

Emissões líquidas zero de carbono são imperativas porque o aquecimento global vem da captura da radiação solar pelo gás carbônico e outros gases de efeito estufa (GEE) presentes na atmosfera. Quanto mais gases, mais captura. Como o gás carbônico (CO2) é muito estável, depois de emitido ele permanece na atmosfera, fora o que é absorvido pelas florestas e pelo mar, e só emissões (líquidas) zero interrompem essa acumulação.

As maiores fontes de emissão de GEE são (1) a queima de combustíveis fósseis, (2) processos industriais em que o oxigênio presente em produtos minerais é separado pela combinação com o carbono, como no caso da siderurgia e do cimento, e (3) processos orgânicos como o decaimento da madeira e do lixo e a digestão em animais ruminantes. Hoje há maneiras de diminuir emissões de cada uma dessas fontes com menores custos e potencial de lucro e de novos empregos, o que facilita seu financiamento. A avaliação de que o desafio climático é superável e estimularia novas soluções foi articulada por Al Gore há um quarto de século. Tendo sofrido resistência inicialmente, ela agora está bem disseminada, inclusive entre empresários, investidores e governantes, especialmente em conexão com a retomada econômica após a Covid-19.

Não há maior indicação de mudança de mentalidade do que o recente relatório da Agência Internacional de Energia (IEA) sobre a descarbonização do mundo.* Essa agência, tradicionalmente associada aos interesses dos produtores de petróleo, indicou de forma inequívoca a urgência de começar a descarbonização para chegar a emissões líquidas zero até 2050, focando já em alcançar as metas de 2030 apontadas pelo painel de mudanças climáticas das Nações Unidas: o sucesso em 2050 passa por grandes transformações nos próximos 3 mil dias.

Odesafio imediato é o PIB mundial crescer 40% até 2030 sem que o consumo de energia aumente mais de 10%. Essa é uma meta ambiciosa, mesmo que o PIB seja puxado

por atividades menos intensivas em energia e carbono, como serviços e tecnologias de informação, e não aço. Ela vai requerer ganhos de eficiência de 50%, muito maiores do que os vistos nas últimas décadas — o que é um subtexto do relatório da IEA: se as metas são para valer, temos de correr, porque há muito petróleo e carvão para cortar.

A eletrificação com energia solar e eólica vai ajudar a cortar o consumo de petróleo, com a substituição dos motores de combustão interna por motores elétricos. Será preciso muito investimento para multiplicar por 100 a geração elétrica fotovoltaica e eólica, levar a eletricidade até os veículos e garantir os materiais para a produção de baterias. Haverá muitas oportunidades de negócios, com a vantagem de que um veículo com motor elétrico consome um terço da energia daquele com motor de combustão interna, gerando um ganho de produtividade.

Também serão necessárias tecnologias que ainda estão em sua infância ou na imaginação de cientistas e engenheiros. Para acelerá-las, o governo vai precisar apoiar a pesquisa, como se viu na corrida para o espaço nas décadas de 1950-1960, ou na física atômica até o fim da Guerra Fria. Além de evitar o desastre climático, essas ações podem ter efeitos positivos e prolongados no crescimento econômico. Como é conhecido, e tem sido popularizado pela economista Mariana Mazzucato, é fato que muito do crescimento econômico nas últimas décadas — do forno de micro-ondas à internet, à medicina genética e à inteligência artificial — baseou-se na exploração imaginosa e eficiente de descobertas feitas a partir de programas públicos, frequentemente associados à defesa nacional.

A lista de tecnologias que têm de ser inventadas ou reinventadas cobre o hidrogênio “verde”, a captura de carbono e a reformulação da fonte nuclear. O hidrogênio obtido a partir de energia elétrica de fontes renováveis, além de servir como combustível, terá papel importante substituindo o carvão ou o coque naqueles processos de tirar o oxigênio de minérios, emitindo vapor d’água (H2O) em vez de gás carbônico (CO2). A captura de carbono vai ser necessária para compensar as emissões inevitáveis, mas, assim como o hidrogênio “verde”, ainda tem um longo caminho para ser competitiva. Ela terá de ir além de bombear CO2 em cavernas, porque o espaço de armazenamento seria insuficiente, e o transporte até lá caro; a transformação do CO2 em negro de fumo supera a questão volumétrica, mas tem mercado limitado. A geração nuclear, para ter espaço no novo mundo, terá de deixar o figurino de 70 anos atrás — de usinas individualizadas, caras, com custos e tempo de construção incertos e operação complexa. Se até no Japão há acidentes horríveis, é evidente que o modelo tem de mudar, ainda que o atual programa nuclear no Reino Unido não vá nessa direção. A entrada de novos atores, como nos programas espaciais, poderia trazer isso, ou a falta de charme do setor e os interesses das empresas existentes bloqueiam essa via?

Os planos do atual governo americano mostram que a nova economia não passa apenas pela infraestrutura, mas também por decisões de consumo, nas residências, no transporte e até na alimentação. Tudo isso cria oportunidades como aquelas após a Segunda Guerra Mundial nos Estados Unidos, que estimularam a ascensão da classe média e 30 anos de crescimento no Ocidente. Mas, como o mundo não é simples, essas mudanças vão se dar junto com aquelas trazidas pelo trabalho remoto e pela automação proporcionada pela internet das coisas e telecomunicação 5G.

Será preciso repensar as cidades da economia verde a partir das lições da Covid-19. Provavelmente, a ênfase nos grandes sistemas de transportes e na densificação das cidades, chave em muitas estratégias de redução de emissões urbanas até recentemente, terá de ser reformulada. Como equilibrar eficiência energética com o desejo de mais espaço e liberdade vislumbrado com a automação e o trabalho remoto, inclusive para

A LISTA DE TECNOLOGIAS QUE TÊM DE SER INVENTADAS OU REINVENTADAS COBRE O HIDROGÊNIO “VERDE”, A CAPTURA DE CARBONO E A REFORMULAÇÃO DA FONTE NUCLEAR

os jovens? Para quantas dos bilhões de pessoas no planeta essa perspectiva é realista e acessível? Qual o risco de se criarem novas clivagens ao redor do mundo?

A economia verde também traz perguntas importantes e urgentes para o Brasil. Temos muitas vantagens, já que nossa matriz energética já é limpa. Mas como mobilizar essas vantagens e fazer nossas soluções, muitas delas baseadas na natureza, serem reconhecidas e viáveis?

OBrasil pode mostrar que o etanol de cana não depende do motor a combustão, podendo alimentar as células de hidrogênio dos veículos do século XXI (usando um “reformador”).

Podemos nos organizar para ampliar a proporção do aço de carbono zero ou menos carbono que já produzimos a partir do carvão vegetal — com um diferencial no comércio internacional e as vantagens de, por exemplo, cobrir as nascentes do Rio São Francisco com florestas plantadas, dando mais água para agricultura do Nordeste e criando uma alternativa mais barata para acabar com o déficit de moradias (usando novas tecnologias de construção em madeira).

Podemos também obter uma geração térmica carbono zero offshore, injetando o CO2 nos poços de óleo e gás, em vez de querer levar o gás natural do mar até a Amazônia enquanto trazemos o elétron de Rondônia para São Paulo.

Podemos ainda criar um mercado de carbono que valorize a captura de carbono pela agricultura integrada à pecuária e à floresta, e por novas formas de tratar os resíduos sólidos e esgotos que hoje representam proporção exagerada de nossas emissões. E, é claro, temos de parar o desmatamento.

Nos dois últimos anos, tenho estudado e conversado com muitas pessoas aqui e ao redor do mundo, e estou convencido de que é possível desenhar um plano de desenvolvimento para o Brasil aproveitando essas possibilidades de forma responsável e inclusiva, sem uma explosão de gastos públicos.

Teremos uma década de mudanças, em que os investidores estão descobrindo novos caminhos e alinhando o setor financeiro aos objetivos do clima. Em paralelo, é provável que se veja um papel maior do setor público, o que é natural porque governo existe para organizar o esforço da sociedade em resposta a ameaças existenciais. O combate à mudança climática não é uma guerra contra outras pessoas ou um vírus, mas vai exigir coordenação de políticas públicas, escolhas bem pensadas e o engajamento da população para realizar a promessa de segurança, crescimento e emprego. O Brasil não pode ficar de fora!

Joaquim Levy é diretor de Estratégia Econômica no Banco Safra, tendo sido ministro da Fazenda e CFO do Banco Mundial. PH.D. em economia pela Universidade de Chicago, dedicou-se ao tema das oportunidades de descarbonização da economia brasileira enquanto fellow do Centro Steyer-taylor da Universidade Stanford, em 2020

HORIZONTE

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2021-05-31T07:00:00.0000000Z

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