Epoca

UM MESTRE DASPALAVRAS

J.D. Salinger, Vladimir Nabokov, James Baldwin, Philip Roth, Ian Mcewan, Jonathan Franzen, Salman Rushdie... É longa a lista de autores traduzidos por Jorio Dauster, diplomata que renegociou a dívida externa brasileira e presidiu a Vale

por Ruan de Sousa Gabriel

J.D. Salinger, Vladimir Nabokov, James Baldwin, Philip Roth, Ian Mcewan, Jonathan Franzen, Salman Rushdie...é longa a lista de autores traduzidos por Jorio Dauster, diplomata que renegociou a dívida externa brasileira e presidiu a Vale

Se Jorio Dauster tivesse perambulado mais por Copacabana quando era moço, talvez hoje fosse outra pessoa. “Estaria de cabelo comprido, tocando violão num bar”, disse ele a ÉPOCA numa conversa por vídeo de sua casa em Brasília. Dono de um ouvido competente e de uma voz grave, Dauster aprendeu a tocar violão para se divertir. As tentativas de estudar piano, na infância, não foram adiante. Ele ainda se lembra do forte cheiro de urina da casa que sua professora dividia com uma dúzia de gatos. Assimilou algumas lições que o permitem “algumas brincadeirinhas no teclado”. Sambas e marchinhas carnavalescas, gênero pelo qual é apaixonado, disponíveis em seu site. “Não consigo ouvir quase nada do que é feito hoje”, afirmou. “Com raras exceções, são repetições de três ou quatro frases imbecis sem nenhuma melodia. Dizem que estou ficando chato, antiquado, que preciso abrir a cabeça. Mas eu sei o que era bom. E fico com o que é bom.” Ele gosta de Bach, de Vivaldi, de Lupicínio Rodrigues e do samba-canção que embalava as noites cariocas de sua juventude.

Frequentador de Ipanema e do Leblon nos anos 1950, Dauster não se aproximou da turma que inventou a Bossa Nova e seguiu outro caminho. Fez carreira no Itamaraty. Integrou a representação brasileira no Canadá e na Tchecoslováquia, atuou na Organização Internacional do Café, em Londres, renegociou a dívida externa no governo de Fernando Collor, dirigiu a Vale logo após a privatização da mineradora e hoje é consultor de empresas e presidente do conselho de administração da Taurus, a maior fabricante de armas do Brasil.

Aos 83 anos, ele também é um dos tradutores mais elogiados do país, responsável por trazer para o português grandes nomes da literatura em língua inglesa, como Vladimir Nabokov, J.D. Salinger, Philip Roth, Ian Mcewan e Jonathan Franzen. Ao todo, já assinou mais de 70 traduções. Duas delas, uma inédita e uma revisada, chegaram recentemente às livrarias: Quichotte, de Salman Rushdie, e Ada ou ardor, de Nabokov, ambas publicadas pelo Grupo Companhia das Letras.

Jorio Dauster Magalhães Silva nasceu no Rio de Janeiro, em 1937. Filho de um médico e de uma professora, cresceu numa casa cheia de livros. Os Dausters, segundo ele, são “uma dinastia fajuta” de Ibiraçu, uma cidadezinha capixaba. Estranhamente, quem batizou a linhagem foi o padre da cidade, que sugeriu que o pai do diplomata-tradutor se chamasse José d’áustria, em homenagem ao então titular da coroa austro-húngara. O rapaz do cartório, porém, se confundiu e registrou José Dauster. “Já houve ocasiões em que eu disse ao telefone ‘aqui é o embaixador Dauster’ e pensaram que fosse o embaixador da Áustria”, contou, rindo.

Dauster adquiriu o “vício” da tradução nos anos 1960, quando, em parceria com Álvaro Alencar e Antônio Rocha, colegas do Itamaraty, traduziu O apanhador no campo de centeio. Ele conhecera o romance de Salinger, no qual o angustiado Holden Caulfield vaga por uma Nova York natalina a se perguntar para onde iam os patos quando tudo congelava, ao passar uma temporada na casa da irmã, em Washington, aos 19 anos. A tradução ficou pronta em 1964, quando Alencar e Rocha já haviam assumido postos diplomáticos no exterior e Dauster recebera uma longa licença do serviço diplomático, cortesia da recém-instalada ditadura militar, que o julgava “subversivo”. Aproveitou o tempo livre para uniformizar a tradução feita a seis mãos.

Com o texto debaixo do braço, procurou Rubem Braga, em sua cobertura, em Ipanema. O cronista era sócio da Editora do Autor, com Fernando Sabino. “Braga nunca tinha

ouvido falar de Salinger, mas disse: ‘Deixa o texto aí que vou ver com o Sabino’”, recordou. A Editora do Autor lançou O apanhador no campo de centeio no ano seguinte. Cada um dos três tradutores recebeu US$ 70 pelo serviço. “Deu para comprar um par de sapatos”, contou Dauster. “O único escritor que exigia que as editoras pagassem direitos autorais também aos tradutores era Philip Roth. Recebo 1% do preço de capa dos livros. Dá uns R$ 14 a cada três meses.”

Para transpor para o português o coloquialismo do texto original, o trio diplomático ensinou a Holden Caulfield algumas gírias cariocas dos anos 1960: “coisa que o valha”, “no duro” e “um bocado”. Até hoje, leitores procuram Dauster para elogiar a tradução. Alguns até o abraçam. Feito raríssimo, a tradução de Dauster, Alencar e Rocha passou mais de cinco décadas em catálogo. A Editora do Autor publicou O apanhador no campo de centeio até 2019, quando a Todavia comprou obra de Salinger e lançou uma nova tradução do livro, assinada por Caetano Galindo, que colocou outras gírias na boca do protagonista: “coisa e tal”, “sem brincadeira”, “pacas”. “Galindo é um grande tradutor e teve a tarefa difícil de refazer uma tradução considerada clássica”, afirmou Dauster. “Ele tentou modernizar a linguagem, e eu confesso que não gostei muito. Mas é natural que surjam outras traduções. A língua muda, e não tenho nenhuma exclusividade sobre o texto do Apanhador.”

Com Alencar, Dauster traduziu outro livro de Salinger, Nove estórias, publicado pela Editora do Autor em 1969. Foi convidado

Em 1964, Jorio Dauster procurou Rubem Braga, que tinha uma editora com Fernando Sabino, para propor a publicação de O apanhador no campo de centeio. Braga não sabia quem era J.D. Salinger

para traduzir os dois outros livros que faltavam (Franny & Zooey e o volume que reúne Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira e Seymour, uma apresentação), mas recusou, porque a carreira diplomática havia deslanchado.

Em 1968, foi enviado para a Tchecoslováquia, que à época buscava dar um “rosto humano” ao socialismo, apesar da oposição soviética. Dauster se lembra do dia 21 de agosto de 1968, quando os tanques do Pacto de Varsóvia, a aliança militar dos países socialistas, avançaram sobre as ruas de Praga pondo fim à “Primavera”. “O embaixador Ivan Batalha me acordou com um telefonema às 3 horas da madrugada: ‘O Pacto de Varsóvia está entrando’”, recordou. “Ele morava no centro e avisou que estava indo para a embaixada com a família.”

Dauster permaneceu em Praga até 1972, quando voltou ao Brasil. Em 1979, seguiu para Londres, onde assistiu de perto a desregulamentação da economia levada a cabo por Margaret Thatcher, que impactou diretamente os acordos que ele tentava aprovar na Organização Internacional do Café. No entanto, o maior desafio da carreira de Dauster, segundo ele próprio, ocorreu quando o Brasil tentava abrir sua economia, no governo Collor. Em 1990, a então ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, o convocou para chefiar a renegociação da dívida externa brasileira. A situação das contas públicas era tão dramática que o país havia suspendido o pagamento dos juros da dívida. “Precisávamos de um negociador respeitado internacionalmente, de reputação ilibada e alinhado aos princípios de negociação soberana da dívida externa. O embaixador Dauster cumpria todos esses requisitos”, escreveu a ex-ministra num e-mail a ÉPOCA. “Por questões completamente fora de seu controle, não fomos bem-sucedidos na renegociação, que só viria a se concretizar mais à frente (em 1994, no governo Itamar Franco).”

Foi em Londres que Dauster voltou a brincar com as palavras alheias. Desafiou-se a traduzir Fogo pálido, o romance mais enigmático do

escritor russo-americano Vladimir Nabokov. Metade do livro consiste em 999 versos decassílabos com rimas alternadas. Dauster propôs uma parceria com o diplomata Sérgio Duarte, que à época servia em Genebra e compunha sonetos. “Traduzíamos por correspondência”, contou. “Quando Sérgio ia a Nova York, passava por Londres e ficávamos horas, feito loucos, discutindo cada verso. Era uma beleza!”. Aprovada por Antônio Houaiss e Paulo Rónai, a tradução foi publicada pela editora Guanabara, em 1985.

Dauster se transformou no “tradutor oficial” do autor no Brasil em 1994, quando Heloisa Jahn, então editora na Companhia das Letras, convidou-o para trabalhar em Lolita. Jahn também o incentivou a se arriscar a traduzir outros autores. “Jorio só queria traduzir Nabokov”, contou. “Na época, eu estava editando um romance político chamado Cores primárias, de um autor americano anônimo, e o chamei para traduzir porque havia muita gíria política e ironia no livro. Ele trabalhou com outros dois diplomatas, Henrique Valle e Bernardo Pericás. A partir daí, topou traduzir outros autores, como Philip Roth, Ian Mcewan etc. Jorio é muito culto, simpático e entusiasmado. Uma vez lhe perguntei qual era a receita para tanto vigor e ele me passou uma vitamina.”

Segundo Dauster, não depender da tradução para pagar as contas contribui para a qualidade de seu trabalho. Ele escolhe os autores com quem quer trabalhar e raramente aceita prazos. “Para viver de tradução, os profissionais precisam trabalhar muitas horas por dia e têm pouco tempo para revisões”, afirmou. Atualmente, Dauster está debruçado sobre um livro do americano George Saunders sobre quatro mestres do conto russo: Gógol, Turguêniev, Tolstói e Tchekhov. Antes, ele estava traduzindo a biografia de Philip Roth escrita por Blake Bailey, mas parou o trabalho porque a Companhia das Letras suspendeu a publicação do livro após o autor ser acusado de abuso sexual por uma editora americana e por ex-alunas. Nos Estados Unidos, a W.W. Norton interrompeu a distribuição do livro, mas a Skyhorse aceitou publicá-lo. Dauster disse não ter uma opinião formada quanto à pertinência da publicação da biografia caso Bailey seja condenado judicialmente por crimes sexuais.

Quanto a outras controvérsias editoriais, ele tem posições claras. É totalmente contra o “politicamente correto” e o movimento, cada vez mais forte nas editoras, que prega que livros de autores negros sejam traduzidos, preferencialmente, por profissionais negros. Dauster já traduziu James Baldwin, escritor americano. Também reclama quando ideologias políticas atrapalham sua outra carreira, a diplomática. A ÉPOCA, ele disse que, em Brasília, evita até mesmo passar na frente do Itamaraty, cuja política externa, sob o governo Bolsonaro, chamou de “lunática” e “tresloucada”. “Não é mais ideologia, é loucura”, afirmou.

Desde o início da pandemia, Dauster pouco saiu de casa. Às vezes, encontra um amigo ou outro ao ar livre. Dispensado de parte das atividades profissionais pela pandemia, passa quase todas as horas livres traduzindo. “A tradução é minha salvação, minha ginástica intelectual”, afirmou. Ele só se ressente de que suas traduções não sejam mais lidas, não por vaidade, mas por lamentar os baixíssimos índices de leitura no Brasil. “Quantas vezes eu traduzi livros maravilhosos do Nabokov com tiragem de apenas 3 mil exemplares! Uma tiragem dessas para um mestre da literatura? Parece brincadeira! É essa a nossa tristeza brasileira.”

Jorio Dauster acredita que seu trabalho como tradutor é melhor porque não depende dele financeiramente e, por isso, pode dedicar mais tempo a cada texto e fazer mais revisões

SUMÁRIO

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2021-05-31T07:00:00.0000000Z

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