Epoca

"O LEGADO DA PANDEMIA SERÁ A VIGILÂNCIA DO ESTADO"

PARA UM DOS CIENTISTAS POLÍTICOS MAIS INFLUENTES DO MUNDO, OS GOVERNOS REUNIRAM UMA QUANTIDADE ENORME DE DADOS SOBRE SEUS CIDADÃOS — E ISSO PODE SER UM RISCO PARA AS DEMOCRACIAS

por Ruan de Sousa Gabriel

Ocientista político americano Larry Diamond foi um dos primeiros a alertar que a democracia estava em refluxo no mundo, muito antes de os populistas começarem a ganhar eleições em diversas partes do planeta. No livro O espírito da democracia, de 2008, o professor da Universidade Stanford, uma das três melhores dos Estados Unidos, afirmou que uma “recessão democrática” estava em curso. Para Diamond, a crise democrática tem se aprofundado à medida que os índices de liberdade têm diminuído. Nos últimos anos, ele focou sua atenção na análise da atuação global de Rússia e China, que considera ameaças às democracias, e nos usos das redes sociais para deteriorar ou promover valores democráticos. A ÉPOCA, Diamond afirmou que a democracia americana continua em risco, mesmo após o fim do governo de Donald Trump, e que o Brasil já não era tão democrático antes da eleição de Jair Bolsonaro.

Qual será o legado da pandemia para as democracias? A longo prazo, o legado da pandemia que mais me preocupa é a implantação de mecanismos de vigilância e rastreio das populações, que, atualmente, são necessários para combater o vírus. Passada a pandemia, os governos terão enormes bases de dados sobre seus cidadãos, que deveriam ser destruídas, mas não dá para confiar que eles farão isso.

O senhor defende que as novas tecnologias trabalhem a favor dos valores e das instituições democráticas. Como tecnologias podem contribuir para restaurar as democracias que elas próprias ajudaram a deteriorar? A tecnologia é neutra. Não há ideologia num chip de silício. Ainda acredito que a tecnologia digital pode promover a liberdade, a democracia e a informação. Não se trata apenas de mobilizar protestos. A Estônia usa a tecnologia para conectar as pessoas com os governos. A tecnologia também pode tornar os governos mais eficientes. Nos Estados Unidos, perdemos mais de US$ 200 bilhões do pacote de estímulo à economia para fraudes. Se as pessoas tivessem carteiras digitais para receber dinheiro do governo, não teríamos perdido tanto. Os sistemas de pagamento digital são uma revolução, como mostram os programas de transferência de renda no Brasil. As possibilidades de usar a tecnologia para aprofundar a democracia e a justiça social são tremendas. Mas, é claro, há riscos, podemos ser vigiados pelos governos. Não é à toa que a China investe em sistemas de pagamento digital. A sociedade também precisa ter mais controle sobre os algoritmos que as redes sociais usam para manipular nossas emoções, coletar nossos dados, vender anúncios.

Em seu último livro, Ill winds — Saving democracy from Russian rage, Chinese ambition, and American complacency (Ventos doentios: salvando a democracia da fúria russa, da ambição chinesa e da complacência americana), o senhor aponta a Rússia e a China como riscos à estabilidade das democracias contemporâneas. Atualmente, os dois países estão engajados na “diplomacia das vacinas”. A pandemia de Covid-19 pode ajudar a Rússia e a China a avançarem em suas ambições geopolíticas?

Elas vão aproveitar todas as oportunidades que tiverem. A China é hoje uma potência neocolonial que explora a dívida dos países para arrancar deles parte de sua soberania. Veja o que está acontecendo na Patagônia, onde há uma estação espacial militar chinesa, à qual os argentinos não têm acesso. Não culpo nenhum governo que compre vacinas russas ou chinesas que sejam minimamente efetivas. A prioridade da política externa americana deveria ser investir na produção de uma vacina confiável que tenha distribuição global e relativamente gratuita. Precisamos salvar vidas e também estamos numa disputa por influência global.

Quais sinais indicam o início de uma recessão democrática?

São vários os sinais de uma recessão democrática: declínio do estado de direito, aumento da corrupção, mudanças nas regras do jogo que resultam em eleições menos livres. Há quatro tipos de regime básicos no mundo: democracias liberais, e um dia tivemos esperança de que o Brasil caminhasse na direção do respeito às liberdades democráticas e aos direitos humanos; democracias eleitorais; regimes autoritários onde há alguma competição eleitoral; e regimes autoritários, onde não há pluralismo político. Na última década, os níveis de liberdade têm diminuído em todos esses regimes.

Se o Brasil não é uma democracia liberal, somos o quê? Uma democracia iliberal. O fato de um populista iliberal com intenções autoritárias declaradas, como Bolsonaro, ter conseguido se eleger já nos leva a questionar a saúde da democracia brasileira. A democracia brasileira está em risco. Assim como a democracia americana esteve em risco sob Trump e, creio eu, ainda está.

O senhor disse que tinha esperanças de que o Brasil caminhasse em direção à democracia liberal. Isso quer dizer que antes da eleição de Bolsonaro já não éramos uma democracia plena?

Mesmo antes de Bolsonaro, a democracia brasileira já não era tão robusta e liberal quanto gostaríamos. A Freedom House (organização não governamental sediada em Washington) tem índices que medem níveis de direitos políticos e liberdades civis, sendo 1 o mais democrático e 7 o menos democrático. Se um país tirar 2 em pelo menos um desses índices, podemos considerá-lo uma democracia liberal, mas bem no limite. Entre 2005 e 2020, o Brasil ganhou nota 2 nesses dois índices. No entanto, acredito que a Freedom House subestimou os riscos à democracia brasileira. As liberdades democráticas não são garantidas em boa parte do território brasileiro. Na Amazônia, militantes do meio ambiente e dos direitos humanos e indígenas são mortos para que a floresta seja derrubada e a fronteira agrícola expandida.

Por que a democracia americana continua em risco apesar do fim do governo Trump?

Parte do Partido Republicano abandonou o consenso democrático, recusando-se a reconhecer o resultado das eleições de 2020 e se apegando a teorias da conspiração. Uma cultura autoritária tomou de assalto o Partido Republicano, que deve fundamentar a oposição ao governo de Joe Biden em fatos e em respeito pelos procedimentos políticos e constitucionais que são vitais para a democracia. Em vários estados, os republicamos estão aprovando leis que diminuem o direito ao voto das minorias e dificultam a certificação de eleições, de modo que será mais fácil para eles roubar no próximo pleito. O compromisso com as regras do jogo é fundamental para a estabilidade da democracia. Todos precisam ter certeza de que, se seus adversários políticos ganharem, não vão montar uma barricada no poder, como fez Viktor Orbán (primeiro-ministro da Hungria) ,e tornar impossível que a oposição ganhe a próxima eleição. É uma regra básica que está sendo abandonada em várias democracias.

O senhor argumenta que o declínio mundial da democracia só será revertido se os Estados Unidos se propuserem novamente a promovê-la. No entanto, as tentativas americanas de promover a democracia pelo globo são, com frequência, vistas como ingerência...

De fato, a trágica invasão do Iraque contribuiu para a má fama da promoção da democracia, que quer dizer solidariedade democrática, não coerção democrática. Trata-se, acima de tudo, de apoio financeiro, técnico e diplomático a atores locais que estejam trabalhando para defender a democracia, os direitos humanos e a liberdade de expressão. Para ser legítima e efetiva, a promoção da democracia deve ser um esforço multilateral. Isso não quer dizer que todo apoio financeiro a ONGS deva vir de múltiplas fontes. No entanto, as organizações que defendem os direitos humanos e o meio ambiente serão mais fortes se não dependerem apenas de um único doador internacional.

O governo Biden deve investir na promoção da democracia?

A estratégia de Biden deve ser multilateral. Os Estados Unidos precisam ser humildes e não se apresentarem como modelo. Devemos ser solidários e firmar parcerias, deixando claro que estamos todos no mesmo barco e que não há nenhuma hierarquia na qual a democracia americana esteja no topo.

HORIZONTE

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2021-05-31T07:00:00.0000000Z

2021-05-31T07:00:00.0000000Z

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